segunda-feira, 7 de abril de 2014

Texto publicado em "A efetividade da Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência" - Organizadores: Francisco J. LIma e Rita Mendonça. Editora Universitária UFPE - 2014
O bode expiatório da educação
Fábio Adiron[1]
Quando os nossos primeiros pais foram confrontados por Deus em relação à sua desobediência eles tentaram evitar a responsabilidade pelos seus erros. Adão acusou Eva (e, indiretamente ao próprio Deus dizendo: essa mulher que VOCÊ me deu...) que, por sua vez, transferiu a culpa para a serpente que, no fim da cadeia da culpa, não tinha para quem passar a batata quente.
O culto do bode expiatório está tão enraizado na natureza humana que um ditado judaico já dizia que “os pais comeram uvas verdes e os dentes dos filhos é que embotaram”. Atualmente a prática de jogar a culpa nos outros é ainda mais comum do que nunca.
Como precisamos continuamente achar culpados para as nossas mazelas, aprendemos a olhar para o mundo com um enfoque deficitário, que destaca sempre o que as pessoas não sabem, ou não podem fazer em detrimento de todas as demais coisas para as quais tem competências.
Alguma coisa aconteceu errado na empresa? Ninguém se preocupa em corrigir, só em descobrir o culpado. O casamento vai mal? A pergunta recorrente é: por causa de qual dos cônjuges?
Não é nada diferente quando falamos de educação. Ainda não conheci ninguém que alguma vez tenha sido chamado à diretoria porque tivesse tirado 10 de matemática. Mas, basta um escorregão em alguma matéria ou na disciplina para que seja armado um barraco que inclui diretor, coordenador, professor e, claro, os pais, que são chamados para reuniões importantíssimas.
As escolas, todo começo de ano, publicam seus programas para cada série com o nome bonito de “habilidades e competências”. Basta começar a primeira aula, cada estudante é cobrado em função das suas inabilidades e/ou das suas incompetências.
Alguns professores já chegaram mesmo a forjar uma falsa etimologia para a palavra aluno, segundo a qual o termo significaria “aquele que não tem “luz”[2], como uma forma pedante de definir quem é o bode expiatório quando algo não funciona bem na educação.
Mais do que isso. A educação jamais admite que qualquer falha no processo educacional seja remotamente relacionada com as instituições escolares e/ou com os professores. Ambos são infalíveis e perfeitos.
Se não é assim, por que somente ouvimos falar em dificuldades de aprendizagem? Cursos livres e extensões universitárias proliferaram nos últimos tempos só para ensinar professores como lidar com essas dificuldades que seus alunos têm.
Até as crianças “normais” apresentam esse déficit (e não são poucos os problemas diagnosticados: desenvolvimento psicomotor, cognitivo, linguístico, emocional, não presta atenção, conversa muito, é lento ou hiperativo, é preguiçoso, não tem assimilação, tem problemas familiares ou sociais e, como diria o saudoso Rei de Sião, interpretado por Yul Brinner: etc, etc, etc.).
Se, para piorar a situação, a criança tem alguma deficiência, ela não tem escapatória nenhuma. Não aprendeu matemática... Ah é porque tem deficiência intelectual e não consegue abstrair (um mito, como tantos outros). A menina não aprende geografia? Também, como poderia? É cega e não pode ver os mapas. O menino não assimila literatura portuguesa? Claro, é surdo e não consegue captar a métrica dos poemas.
Os objetivos tradicionais na educação de pessoas com deficiência, ainda se orientam por conseguir alcançar comportamentos sociais controlados, quando deveriam ter como objetivo que essas pessoas adquirissem cultura suficiente para que pudessem conduzir sua própria vida. Ainda vivemos em um modelo assistencial e dependente quando a meta da inclusão é o modelo competencial e autônomo.
O pensamento pedagógico dos profissionais, é que “as crianças com deficiência são os únicos responsáveis (culpados) por seus problemas de aprendizagem (às vezes esse sentimento se estende aos pais), mas raras vezes questionam o sistema escolar e a sociedade... o fracasso na aprendizagem deve-se às próprias crianças com deficiência e não ao sistema, pensa-se que são eles, e não a escola, quem tem que mudar.”[3]
É mais um modelo baseado no déficit, que se centra na necessidade do especialista, da busca de um modo terapêutico de intervir, como se a resolução dos problemas da diversidade estivesse sujeita à formação de especialistas que se fazem profissionais da deficiência.
Claro que, mais do que uma prática pedagógica, isso é um problema ideológico, por que o que se esconde atrás dessa atitude é a não-aceitação da diversidade como valor humano e a perpetuação das diferenças entre os alunos, ressaltando que essas diferenças (e dificuldades de aprendizagem) são insuperáveis.
A escola inclusiva é aquela onde o modelo educativo subverte essa lógica e pretende, em primeiro lugar, estabelecer ligações cognitivas entre os alunos e o currículo, para que adquiram e desenvolvam estratégias que lhes permitam resolver problemas da vida cotidiana e que lhes preparem para aproveitar as oportunidades que a vida lhes ofereça. Às vezes, essas oportunidades lhes serão dadas. Mas, na maioria das vezes, terão que ser construídas e, nessa construção, as pessoas com deficiência têm que participar ativamente.
Esta incompreensão da cultura da diversidade implica em que os profissionais pensem que os processos de integração estavam destinados a melhorar a educação especial ou que se convencionou chamar de educação inclusiva, e não a educação em geral.
Encontramo-nos em um momento de crise[4], por que os velhos parâmetros estão agonizando e os novos ainda não terminaram de emergir. Penso que a cultura da diversidade está colocando contra a parede escolas, educadores e pais, uma vez que, aos poucos, estão descobrindo que não é mais possível lançar a culpa em apenas um bode.
A cultura da diversidade vai nos permitir construir uma escola de qualidade, uma didática de qualidade e profissionais de qualidade.
Todos teremos de aprender a ensinar. Mas não adianta simplesmente trocar o nome dos bodes e passar a culpar as escolas e os professores por todos os desastres da educação. Claro que estes têm as suas deficiências, o que não nos permite pura e simplesmente mudar o enfoque deficitário, hoje lançado nos alunos, para os professores, mas investir (e não falo só de investimento pecuniário) nas suas competências.
O principal instrumento de transformação de uma escola que deixe de falar em dificuldades de aprendizagem e passe a capacitar baseada em competências é o professor.
A cultura da diversidade é um processo de aprendizagem permanente, onde TODOS devemos aprender a compartilhar novos significados e novos comportamentos de relações entre as pessoas.
Uma cultura que deixe de buscar um culpado para cada uma das suas dificuldades, sejam de ensino ou de aprendizagem, mas valorize o que cada um pode oferecer de melhor.


[1] Consultor e professor de Marketing. Membro da Comissão Executiva do Fórum Permanente de Educação Inclusiva. Coordenador do Cemupi e do grupo de estudos Projeto Roma Brasil. Responsável pelos blogs http://insanadiron.blogspot.com e http://xiitadainclusao.blogspot.com. Contato: fadiron@terra.com.br
[3] Melero, Miguel Lopez - Diversidade e Cultura: uma escola sem exclusões. Universidade de Málaga. Espanha.2002
[4] “A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo não consegue nascer.” Antonio Gramsci.

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