domingo, 29 de junho de 2014







As conquistas de uma criança autista

Receber a notícia de que o filho é autista transforma as suas perspectivas de presente e futuro, mas é a partir dessa mudança que você pode apresentar um novo mundo para a criança. Conheça o dia a dia de uma família em que uma das filhas gêmeas tem o distúrbio

Por Ana Paula Pontes | Fotos: Raoni Maddalena - atualizada em 25/06/2014 16h53
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Luciana e sua filha, Mari Mari (Foto: Raoni Maddalena/Editora Globo)
“Aqui mora uma família feliz.” As palavras talhadas na plaquinha de madeira que enfeita a porta do apartamento da pedagoga Luciana Nassif, 39 anos, e do comerciante Marcos Antonio Cavichioli, 46, em São Paulo, antecipam o clima que eu iria encontrar na casa dessa família, apesar da avalanche de sentimentos que tomou a todos nos últimos anos. Com um sorriso no rosto, um tererê ornando os longos cabelos lisos e castanhos, quem me recebe é uma das gêmeas do casal, Isabela, 8 anos. Assim que entro, sou convidada a conhecer sua irmã. No quarto, com a babá, Mariana se mostrou indiferente com a minha chegada. Mesmo com a insistência da mãe para que se virasse para mim, continuou com um olhar cabisbaixo. Mari Mari, como é carinhosamente chamada, é autista.
Ela está aprendendo agora a demonstrar e a receber carinho, por gestos. Mari Mari não fala. Ela tem um grau severo do transtorno do espectro autista, termo que os especialistas usam para se referir aos diversos graus que envolvem o autismo. Fica mais fácil entender se comparamos a um dégradé, desde cores muito escuras, em que se encontram os casos mais graves, até as cores claras. Por isso cada criança tem um ritmo próprio de desenvolvimento. Para Mari Mari, que estaria na parte escura deste dégradé, é preciso ensinar o que parece tão corriqueiro. Há um ano, e pela primeira vez, a menina abraçou a mãe – um dos pilares do comportamento autista é a dificuldade de interação com o outro. É um abraço “adaptado”. Ela aceita o carinho, mas não cruza as mãos por trás das costas da pessoa. Em vários momentos da entrevista, ela corria, na ponta dos pés (um comportamento que começou aos 5 anos) para o colo da mãe, sorria, trazia o boneco predileto, gargalhava. O contato visual, o beijo, que não é aquele estalo no rosto, mas uma encostadinha apenas, demonstrações de interesse pela irmã e o sorriso presente no rosto eram cenas apenas sonhadas pela família até pouco tempo.
Mari Mari (Foto: Raoni Maddalena)
A mãe me conta, em tom de orgulho, as recentes conquistas da filha. Mari Mari não se incomoda mais se uma criança chega perto dela no parquinho, mesmo que prefira estar só, e ganhou autonomia para comer sozinha e “pedir” o que tem vontade, como quando leva o litro de leite até a mãe para que ela o esquente. “Pode parecer pouco, mas esse é um grande avanço”, diz Luciana. Não, não é fácil ter um filho autista. Mas o diagnóstico não é o fim, e sim um novo começo na vida de toda a família.
Onde tudo começa?
A ciência não descobriu, até hoje, a causa da doença. O que os especialistas concordam é a forte influência da genética na alteração do funcionamento do cérebro do autista. Alguns genes – e muitos foram identificados – podem ou ser herdados mutados dos pais, algo raro, ou sofrer novas mutações durante a formação do embrião. Mas não para por aí. Várias teorias são relacionadas a todo momento com o aparecimento do transtorno, mas nem todas são referendadas pelos médicos e nada é conclusivo. Alimentação, vacinação, infecções na gravidez e até intercorrências no parto ou nos primeiros anos de vida integram essa lista. As pesquisas relacionam até fertilização in vitro e prematuridade, como é o caso das gêmeas, que nasceram de 32 semanas.
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Isabela saiu da maternidade em cinco dias. A irmã, nos mais de três meses em uma UTI neonatal, passou por uma cirurgia cardíaca e diversos exames, inclusive para detectar a existência de alguma síndrome por ter nascido com as orelhas mais baixas e os dedos levemente flexionados. Mari Mari, segundo os médicos, tinha atraso no desenvolvimento neuropsicomotor.
Mesmo acompanhada por uma equipe multidisciplinar desde os seis meses, não mostrava avanços. “Ela gostava de ficar sozinha na escola e, aos 2 anos, teve a primeira convulsão (problema que afeta 25% dos autistas).” Aos 3, os atrasos ficaram evidentes e ela passou a balançar as mãos quando ficava nervosa. “Quando questionei o neurologista que a acompanhava sobre a possibilidade de autismo, ele disse que eu não sabia o que era uma criança com o transtorno. Nunca vou me esquecer disso”, diz. A avó materna das meninas, que desconfiava da existência de um problema maior, mostrou a Luciana uma reportagem sobre autismo. Depois de ler, ela agendou uma consulta com um dos especialistas entrevistados. Em 40 minutos e aos 4 anos e 7 meses, a família soube que Mari Mari era autista. 
Essa trajetória desgastante não é incomum. Como não há um exame que detecte o transtorno, o diagnóstico é clínico, feito com base no comportamento da criança. E pode levar muito tempo para chegar a uma conclusão. “O ideal é descobrir o transtorno com cerca de 1 ano, quando os tratamentos dão resultados melhores”, diz Antonio Carlos de Farias, neurologista infantil do Hospital Pequeno Príncipe (PR), pesquisador e coautor do livro Transtornos Mentais em Crianças e Adolescentes: Mitos e Fatos (Ed. Autores Paranaenses). Se identificado nessa fase, ou até os dois anos, a chance de a criança falar é de 75%. “No Brasil, estima-se que existam 1 milhão e meio de autistas, e menos de 5% recebem a assistência adequada”, diz Estevão Vadasz, psiquiatra, que estuda o assunto desde 1978, coordenador do Programa dos Transtornos do Espectro Autista, referência no país, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP. Segundo o Ministério da Saúde, uma a cada mil crianças é autista no Brasil. Dados internacionais, porém, mostram que essa incidência é de uma para cada 110.
Por que comigo?

Não há como dimensionar o impacto de quem recebe o diagnóstico de que o filho é autista. Culpa, perda, medo do futuro, busca e recusa de informações são comuns. “Foi como arrancar minhas esperanças. Na hora pensei apenas na impossibilidade”, afirma Luciana. O pai, a princípio, negou o diagnóstico. Hoje, entende de outra maneira: “Para mim, ela é autista e igual a todo mundo”, diz Marcos.
Foi em uma instituição especializada para autistas, a Associação de Amigos do Autista (AMA), de São Paulo, que a ideia de Luciana sobre o transtorno mudou. O estigma do autismo deu lugar às possibilidades que a filha poderia ter. “Quando conheci crianças autistas mais velhas fazendo coisas que nunca imaginei que a Mariana pudesse fazer, o horizonte se abriu e vi quanto poderia ajudá-la”, diz a mãe.  O grau de autismo também determina o desempenho intelectual. Muitos autistas podem se formar, trabalhar, como é o caso famoso da americana autista Temple Grandin, 63 anos, doutora em ciências animais, autora de diversos livros sobre o assunto, cuja história foi retratada no filme com seu nome, exibido esporadicamente na TV por assinatura.
Mari Mari, que até então frequentava a mesma escola que a irmã, passou a ir para a AMA, que funciona como uma escola e é conveniada com a Secretaria de Estado da Educação. “Ela não conseguia acompanhar as aulas, e as orientações da escola eram muito distintas daquelas ensinadas na AMA. Então, o médico avaliou que o melhor para Mariana era ter, apenas, o atendimento especializado”, diz Luciana. Para Carla Gikovate, neurologista especializada em educação especial e inclusiva, é benéfico a criança estar em uma escola regular e usufruir de um ambiente  com estudantes que não tenham as mesmas dificuldades, mas isso varia de acordo com o grau de autismo de cada um. Como o caso de Mariana é considerado grave, por enquanto, ela vai apenas na AMA.
A família aprendeu quais cuidados a criança autista necessita e passou a aplicá-los em casa, o que é fundamental. “Você tem que ensinar o tempo todo”, diz Luciana. O pai é o grande companheiro. Pela filha, até feijão aprendeu a fazer. No lanche da tarde no dia em que estive lá, quem apoia Mariana para comer a manga picadinha com o talher é Isabela. Com cuidado, ela pega a mão da irmã e ajuda a colocar a fruta na boca. Depois, Mari Mari repete sozinha. Tudo precisa ser ensinado, e repetido, várias vezes ou porque ela vai levar mais tempo para aprender ou porque, às vezes, está dispersa demais.
Se um filho autista exige muito, há um risco grande do irmão, mais independente, se sentir de lado. “É fundamental reforçar a individualidade de cada filho”, diz Ana Maria Bereohff, psicóloga e consultora técnica da Associação Brasileira de Autismo. Apesar de entender as limitações da irmã, Isa sente muito ciúme, até da babá. Para driblar essas situações, Luciana faz passeios apenas com ela e está planejando uma viagem de avião.
O momento mais esperado do dia, e de maior cumplicidade das irmãs, acontece à noite. “Ao chegar em casa, Isabela fala para a irmã: ‘Vem aqui, minha fofa’. E todos fazemos festa com ela”, diz Luciana. Mari Mari adora ouvir as músicas que Isabela canta enquanto brincam de roda. Não demora e ela se afasta, então Isabela a incentiva, incansavelmente, para voltar para a brincadeira. Na hora de dormir, vão juntas para o quarto e antes que Mari Mari, que dorme na parte de baixo da bicama, caia no sono, a irmã dá um beijo em sua bochecha e diz: “Pode dormir, minha pequenininha”.
Futuro de promessas?

Mari Mari e Isabela (Foto: Raoni Maddalena)
Apesar de ainda não haver cura para autismo, Luciana tem muita esperança. Nesse momento, como muitas mães de crianças com o transtorno, ela é do tipo mãe-pesquisadora, sempre atrás de notícias – todos os dias ela procura novidades na internet. “Mas fujo de tudo que seja pessimista e informações sem comprovação”, diz. Um dos estudos que mais a animou foi o que se refere à equipe do neurocientista brasileiro Alysson Muotri, da Universidade da Califórnia (EUA). O estudo, publicado na revista Cell no fim de 2010, sugeriu que neurônios autistas pudessem ser “consertados”. Eles descobriram que o tamanho do núcleo de neurônios autistas são menores que os normais, e o número de sinapses, que permite a comunicação entre eles, reduzido. Quando submetidos a duas drogas tóxicas para humanos, esses neurônios passaram a se comportar como normais. O próximo desafio é desenvolver medicamentos capazes de ajudar quem sofre do distúrbio. “Tenho certeza de que vão descobrir a cura”, afirma a mãe. 
Pensar no futuro é uma das poucas coisas que tiram a serenidade de Luciana. “Tem horas que imagino o que vai ser da Mariana quando eu morrer. Espero que demore mais uns 80 anos”, afirma. Para manter a própria “sanidade mental”, como diz, e ajudar com as finanças, ela não parou de trabalhar. Durante o dia, longe da mãe, Mari Mari não demonstra saudade. A história muda quando viagens de trabalho aparecem. “Como brinco com ela de me esconder atrás da cortina, no primeiro dia fora de casa ela me procura ali. Para reduzir a distância, peço para meu marido colocar o telefone no viva voz e falo com ela.”
Mariana, assim como a irmã, tem uma poupança e uma previdência privada. Esse dinheiro, segundo Luciana, é para alguém administrar a vida dela se ainda for autista – a condicional é sempre usada, ela tem certeza de que a cura virá. Provavelmente, vai ser Isabela, mas acha cedo para conversar com a filha sobre isso. E ela não quer, de forma alguma, que ela anule sua vida por Mariana. Ao mesmo tempo, deseja e acredita que essa preocupação de cuidar da irmã será algo natural. Quatro horas depois de chegar a casa da família, me despeço. Isabela me acompanha até o elevador e Luciana incentiva Mariana a fazer o mesmo. Me abaixo na altura de Mari Mari, que com um sorriso tímido e acenando junto com as mãos de sua irmã, me olhou pela primeira vez antes que a porta se fechasse.
OUTRAS FONTES: Marco Antonio Arruda, neurologista da infância e adolescência da Associação Brasileira de Neurologia e Psiquiatria Infantil; Salmo Raskin, diretor da Sociedade Brasileira de Genética Médica; Convivendo com Autismo e Síndrome de Asperger (M.Books).
*Este texto foi publicado na edição 209 (abril, 2011), na Revista Crescer


MAI27

“MEU UNIVERSO PARTICULAR” – CONHECENDO A SÍNDROME DE ASPERGER- por Caio Borba Casella, Camila Luisi Rodrigues, Lorena Alves Sampaio de Souza e Rosa Magaly C. Borba de Morais, extraído do livro “Aprendizagem, comportamento e emoções na infância e na adolescência-uma visão transdisciplinar”- Elisabete Castelon Konkiewitz (Org.) editora UFGD, 2013.

asperger 7“— Christopher, você entende que eu amo você? — Sim, eu entendo. Porque amar é ajudá-lo quando ele está com problemas, tomar conta dele, falar sempre a verdade, e o pai toma conta de mim quando eu estou com problemas, (…) e isso quer dizer que ele me ama.” (“O Estranho caso do Cachorro Morto” – Mark Haddon)


Caso clínico

“Esse menino não dava problema até começar a estudar. Quando bebê, às vezes, tinha que olhar seu sono para conferir que estava respirando. A gravidez, o parto e o desenvolvimento foram todos normais. Às vezes, quando estava concentrado em algo, parecia surdo, não respondia quando a gente chamava – coisas de criança. Sempre gostou de dinossauros e sabia tudo dos desenhos – chegava a repetir todas as frases. Sempre foi tão inteligente que aprendeu a ler sozinho aos três anos. Antes de entrar na escola já falava de um modo bem explicado, parecia gente grande. Não sente medo de altura ou escuro, mas se assusta com qualquer barulhinho. Olha nos olhos, mas por pouco tempo. Não consegue entender as piadas dos amigos e é sempre visto como sem graça. Meu marido diz para não me preocupar, pois meu sogro era igualzinho. Mas a escola achou melhor trazê-lo aqui.”


O caçador de borboletas-por Carl_Spitzweg
O caçador de borboletas-por Carl_Spitzweg

Introdução
Em 1944, um ano após Leo Kanner ter definido o “autismo”, um psiquiatra vienense, Hans Asperger, descreveu crianças com o que chamou de “psicopatia autística” – mais tarde, denominada síndrome de Asperger (SA). O caso clínico descrito acima ilustra sinais de alerta desse transtorno ainda pouco conhecido. Ao longo deste capítulo iremos abordar os principais sintomas dessa síndrome e oferecer orientações que julgamos primordiais para um cuidado efetivo. Conceito A SA é um quadro pertencente aos transtornos globais do desenvolvimento (TGD). Os TGDs são alterações na capacidade cognitiva e adaptativa ao longo do desenvolvimento do indivíduo. Englobam não só a SA, mas também o autismo (em seus diversos níveis de gravidade), os transtornos desintegrativos da infância, a síndrome de Rett, entre outras definições. A SA faz parte do espectro autista, o qual pode abranger quadros que caracterizam desde o autismo clássico – descrito por Leo Kanner – até indivíduos com potencial bem mais preservado. A causa é multifatorial, envolvendo genética e ambiente. Entretanto, em apenas 10% dos casos é seguramente identificada. Apesar de também estar presente em sujeitos adultos, essa síndrome é melhor reconhecida por psiquiatras da infância e adolescência1. Diferenças entre autismo de alto funcionamento e a SA As principais diferenças entre a SA e o autismo de alto grau de funcionamento são ausência de retardo mental e inexistência de atraso no desenvolvimento da linguagem na SA (sempre presente nos casos de autismo)2. Além disso, crianças com essa síndrome são, frequentemente, consideradas “desajeitadas”, o que não é visto costumeiramente no autismo1. Enquanto indivíduos com autismo foram descritos como “vivendo em um mundo próprio”, como se outros não existissem, os pacientes com Asperger foram descritos como “vivendo em nosso mundo, à sua maneira”.3
Der-Hagestolz-por Carl spitzweg
O solteirão-por Carl Spitzweg (1808-1885). Carl Spitzweg: pintor alemão, solteiro durante toda a sua vida, retrata com grande sensibilidade a vida de homens solitários e excêntricos.

Frequência de casos – epidemiologia Estima-se que 16 a 36 em cada 10.000 crianças em idade escolar teriam a síndrome de Asperger. Essa prevalência é bem maior que a do autismo4. Os meninos são mais acometidos, em uma proporção de até 7 meninos para cada menina4, dependendo do critério diagnóstico utilizado. Das crianças com Asperger, 50% atingiriam a idade adulta sem um diagnóstico ou tratamento adequados5.


Formas de manifestação:    asperger 1


A tríade sintomática
Em decorrência das alterações precoces no funcionamento do cérebro, há alterações na comunicação (principalmente não verbal), prejuízos significativos na interação social recíproca e comportamentos e interesses restritos2.

O geólogo-por Carl_Spitzweg
O geólogo-por Carl_Spitzweg
O funcionamento mental na SA
Pessoas com essa síndrome estão no extremo mais leve do espectro dos transtornos globais do desenvolvimento (TGD) em relação não só à tríade de sintomas, mas no que diz respeito às suas capacidades cognitivas (capacidade de aprender, organizar, reter e generalizar conceitos)6. Porém, podem ter dificuldades na memória imediata, no controle de impulsos, na percepção de si mesmos, na definição de prioridades, na capacidade de planejamento, na compreensão de ideias muito complexas e abstratas, e na utilização de novas estratégias para enfrentar problemas. Outro ponto importante, desenvolvido pelos autores Baron-Cohen (1995), chama-se teoria da Mente. Trata-se da possibilidade de nos colocarmos no lugar do outro e compreender seus estados mentais6. Isso é primordial para dar sentido ao comportamento humano e fazermos entender as pistas que predizem a forma de reação esperada de um indivíduo em dado contexto7. No caso das pessoas com SA, é fundamental termos claro que a inabilidade para reconhecer e entender pensamentos, crenças, desejos e intenções de outras pessoas não se relaciona a uma ausência de empatia – terrível insulto às pessoas acometidas pela síndrome – ou da indiferença com os sentimentos dos outros, mas de um comportamento social inesperado, fruto de falha na teoria da Mente. Uma das consequências do comprometimento e atraso nas habilidades da teoria da Mente é a tendência a fazer uma interpretação literal do que é dito por alguém e confusões na interpretação de metáforas. Crianças e adultos com TGDs, incluindo a SA, parecem ter menos contato visual que o esperado, tendendo a olhar para o rosto de uma pessoa com menos frequência e, portanto, perdendo as mudanças de expressão. Evidências também indicam dificuldades das pessoas com SA em entender o significado da entonação e ritmo da voz. A pessoa com diagnóstico de SA parece quebrar as regras sociais. Se o adulto ou a criança não souber que esse comportamento é devido às habilidades da teoria da Mente pouco desenvolvidas, a interpretação do comportamento tende a ser um julgamento moral: que a criança com SA está sendo deliberadamente desrespeitosa e grosseira. Temos de reconhecer o grau de esforço mental exigido às pessoas com SA para processar informação social – utilização de mecanismos cognitivos para compensar a insuficiência das competências da teoria da Mente. Além da sensação de estar sendo injustiçado (devido a muitas experiências sociais, nas quais eles encontram um maior grau de gracejos provocatórios e deliberados do que seus pares), limitado êxito social, baixa autoestima e exaustão podem contribuir para o desenvolvimento de uma depressão clínica associada à SA7.
uma visita-por Carl Spitzweg
uma visita-por Carl Spitzweg

Eficiência intelectual

A SA pode ser caracterizada por coeficiente de inteligência (QI) de normal até as faixas mais altas, com habilidades especiais8. Na escola, apesar da inteligência normal, podem apresentar dificuldades em compreender conceitos abstratos, como os usados em metáforas e alegorias, dificultando o aprendizado acadêmico7.


Um estudioso das ciências naturais-por Carl_Spitzweg
Um estudioso das ciências naturais-por Carl_Spitzweg
Linguagem
A habilidade de linguagem verbal nessas crianças está preservada. Apesar de desenvolverem a linguagem, demonstram dificuldade específica6. A linguagem pode ser marcada por padrões restritos de entonação. A velocidade da fala pode ser muito rápida ou pode haver fala entrecortada. É comum a voz ser muito alta, apesar da proximidade física e falta de ajustamento da voz ao ambiente social em questão (biblioteca ou em uma multidão barulhenta)9. A fala pode transmitir um sentido de frouxidão de associações e incoerência. Inversão pronominal, inabilidade para iniciar ou sustentar uma conversação, linguagem inflexível e ritualística e falta de sensibilidade para responder às demandas linguísticas e comunicativas do interlocutor são frequentemente observadas. Podem falar incessantemente sobre um assunto favorito, geralmente, sem qualquer relação com o fato de a pessoa que escuta estar envolvida. O indivíduo pode não chegar nunca a um ponto ou a uma conclusão9.


Habilidades sociais
asperger_syndrome-autistic-social_interaction-social_skills-bombs-ksmn3333l  Os déficits sociais associados à SA, além das lacunas em toda teoria da mente, já explicadas anteriormente, são resultantes da dificuldade da capacidade de julgamento e da crítica7. Sujeitos com esse diagnóstico são normalmente isolados sociais, mas tendem a não se retirar quando estão ao redor de outras pessoas10. Existe a intenção de estar com o outro, mas as vias e formas como esses indivíduos se comunicam, se interessam e se comportam são diferentes e parecem estranhas6. Normalmente, abordam os demais de maneira inapropriada e excêntrica. Sua intuição diminuída e falta de adaptação espontânea são responsáveis, em grande parte, pela impressão de ingenuidade social e rigidez comportamental9.   Funções motoras Indivíduos com SA podem ter um atraso das habilidades motoras1, tais como andar de bicicleta, agarrar uma bola e subir em brinquedos de parquinho ao ar livre1. Com frequência, são desajeitados e têm uma coordenação comprometida. Podem exibir padrões de andar arqueado ou aos saltos, e uma postura estranha1.

Atenção e funções executivas
Na vigência da SA observamos um comprometimento atencional importante9. Podem ser demasiadamente focados, respondendo apenas a um tipo de estímulo proveniente do ambiente e excluindo os demais, e não conseguindo compartilhar a atenção, deslocando-a de um lugar para o outro (hiperfoco). Também podem não se fixar em nenhum estímulo específico parecendo alheios, inquietos ou indiferentes (hipofoco)6.
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O apreciador de cactos-por Carl Spitzweg

Memória
Estudos realizados em 5 meninos com idades entre 12 e 17 anos apontam para preferência pela via visual e uma maior dificuldade na recuperação de informações com origem auditiva9. Habilidades especiais Em 10% dos indivíduos com SA encontramos ilhotas de habilidades – um talento excepcional ou aptidão extrema para determinadas tarefas, como desenhar, por exemplo10. Podem, inclusive, apresentar hiperlexia (capacidade de aprender a ler em idade precoce, sem auxílio pedagógico) e memória visual excepcional.

Critérios utilizados para o diagnóstico

O critério mais usado para o diagnóstico da SA é o Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais – IV edição – revisado no DSM-IV-R, elaborado pela Associação Americana de Psicologia (APA). O DSM-IV-R classifica essa síndrome como um dos cinco transtornos globais do desenvolvimento e se baseia, principalmente, na menor intensidade da tríade dos TGDs e nas diferenças entre autismo de alto funcionamento e SA. Para darmos esse diagnóstico não podemos ter satisfeitos os critérios para qualquer outro transtorno global do desenvolvimento ou para esquizofrenia, e os sintomas devem estar presentes antes dos 3 anos11. A Classificação Internacional das Doenças em sua 10ª edição (CID – 10) foi elaborada pela Organização Mundial de Saúde e abrange doenças de todos os campos da Medicina. Pela lei brasileira é o instrumento de referência para o diagnóstico dos TGDs. Os critérios da CID 10 são, mais uma vez, baseados na tríade sintomática2. Em 1989, o psiquiatra sueco Christopher Gillberg elaborou outro sistema de critérios para o diagnóstico, que abrangem: prejuízos sociais, interesses restritos, rotinas repetitivas, problemas de linguagem e de comunicação não verbal, e problemas de coordenação motora. Esse critério é considerado, por alguns, o que mais se aproxima das características da síndrome3.

Carl spitzweg
por Carl Spitzweg
Evolução

A evolução da SA é muito variável. O melhor prognóstico (qualidade de vida no futuro) está associado com diagnóstico precoce. A maioria atinge a velhice, mas há mortalidade aumentada em subgrupos (com epilepsia ou outros transtornos médicos, afogamento, acidentes). Questões básicas permanecem (como na priorização, organização, planejamento e execução das ações, e na habilidade social), mesmo que amenizadas. Há uma incidência aumentada de problemas psiquiátricos secundários (transtornos de humor, de atenção, ansiosos, de personalidade, afetivos, sociais e catatonia). Na síndrome de Asperger, pelo menos 1 em 3 consegue se sair muito bem na vida adulta, provavelmente 1 em 3 consegue se sair relativamente bem, e apenas 1 em 3 chega à vida adulta dependendo de cuidados5. O futuro dependerá do desenvolvimento de um conhecimento mais específico (inclusive genético) e tratamento sintomático para os subgrupos. A psicoeducação e análise aplicada do comportamento também desempenham um papel importante na garantia de melhor evolução do quadro.

Tratamento:
Tratamento não farmacológico
O tratamento da SA depende de uma abordagem multidisciplinar e interdisciplinar, com intervenções farmacológicas, manejo educacional, comportamental e de linguagem12. O planejamento do tratamento deve ser estruturado de acordo com as etapas de vida do paciente. Portanto, com crianças pequenas, a prioridade deveria ser terapia da comunicação, da interação social/linguagem, educação especial e suporte familiar. Já com adolescentes, os alvos seriam os grupos de habilidades sociais, terapia ocupacional e sexualidade. Com adultos, questões como as opções de moradia, profissionalização e tutela deveriam ser focadas. Há evidência de que fornecer educação formal precocemente, a partir dos dois aos quatro anos, aliada à integração de todos os profissionais envolvidos, é a abordagem terapêutica mais efetiva13. Parece haver uma relação direta entre o tempo gasto em uma sala de aula trabalhando em uma matéria escolar específica e a melhora naquela matéria. Essa melhora é significativamente associada à inteligência verbal, ainda que o desempenho esteja abaixo da idade cronológica da criança13. É importante ter em mente as vantagens de se expor a criança com TGDs à convivência com aquelas sem comprometimento e de aprender com elas por meio da imitação, mas também não esquecer o risco de que ela seja vítima de gozação e incompreensão dos colegas.asperger a


Intervenções fonoaudiológicas

Estas intervenções incluem o uso do brinquedo, da linguagem social, da produção da linguagem e de tecnologias capazes de aumentar a capacidade de comunicação. A terapia com o Sistema de Comunicação por Troca de Figuras – em inglês, PECS – é um programa estruturado que utiliza a troca de figuras para estabelecer a comunicação. A criança é ensinada a iniciar a relação na comunicação a partir do ato de trocar a figura pelo objeto desejado. Esse sistema facilita tanto a comunicação quanto a compreensão, quando se estabelece a associação entre a atividade/símbolos. Ao focar em formas alternativas de comunicação, as crianças podem ser encorajadas a utilizar a fala. Não há evidência de que o uso de sinais e fotos diminua a motivação para o desenvolvimento da fala12. Intervenções educacionais e comportamentais Inúmeros comportamentos que crianças típicas aprendem “por si mesmas” necessitam ser ensinados de uma maneira mais específica para crianças com TGD. A maioria dos programas educacionais para crianças autistas, embora frequentemente tenham áreas de ênfase diferentes, compartilham objetivos semelhantes: desenvolvimento social e cognitivo, comunicação verbal ou não verbal, capacidade de adaptação e resolução de comportamentos indesejáveis. Muitas dessas áreas se sobrepõem e é importante entender que as prioridades educacionais variam à medida que a criança se desenvolve. A maioria dos métodos de intervenção e tratamento pode ser subdividida em 3 grandes grupos14: a) Aqueles que usam modelos de análise aplicada do comportamento (Terapia de Análise de Comportamento – ABA). b) Os que são fundamentados em teorias de desenvolvimento (Floor Time e as Intervenções de Desenvolvimento de Relações – RDI). c) Aqueles que são fundamentados em teorias de ensino estruturado (TEACCH – Treatment and Education of Autistic and Related Comunication – Handicapped Children).

Tratamento farmacológico
Os TGD permanecem sem medicação específica e sem cura até o momento. A necessidade de uso do medicamento é definida pelos sintomas presentes, pela gravidade dos mesmos e pelo impacto negativo nas atividades diárias. O uso do medicamento visa minimizar os sintomas-alvos mais intensos e possibilitar não só melhora na qualidade de vida de toda a família, mas a adesão às outras estratégias de tratamento3.

Um apreciador de cactos-por Carl_Spitzweg
Um apreciador de cactos-por Carl_Spitzweg

Estratégias para enfretamento pelos pais

Procurar, na medida do possível, manter uma rotina com tempo de espera para atividades definido, não muito prolongado, ambiente previsível e seguro, visando diminuir problemas no comportamento e melhor adaptação social. Treinar o enfretamento às modificações do planejamento original e ampliar, gradativamente, o repertório de interesses também é vital. Encorajar a flexibilidade do pensamento. Isso pode começar em uma idade precoce, como por exemplo, quando estiver jogando com uma criança muito jovem com SA, um adulto pode jogar o jogo de “O que mais poderia ser?” Além disso, um adulto pode verbalizar seu pensamento, quando estiver resolvendo problemas, de modo que quando a criança com SA escutar as várias abordagens do adulto poderá considerá-las a fim de resolver o problema. Identificar potencialidades e ressaltá-las, sem necessariamente fazer das mesmas um interesse restrito. Fornecer explicações diretas e simples, com exemplos concretos do dia a dia. Considerar necessário o ensinamento de normas e regras de convivência intuitivas à maioria das pessoas. Promover estímulos visuais para o entendimento de sentimentos, emoções e soluções de problemas. Os cuidadores podem funcionar como facilitadores na explicitação das ideias dos indivíduos com SA, oferecendo modelos de comunicação e interação social recíproca adequada quando os mesmo estiverem no grupo. O local onde a criança trabalha em casa deve contribuir para a concentração e o aprendizado. É extremamente útil se os pais criarem um calendário diário para as tarefas de casa da criança e um caderno ou intercâmbio diário entre a casa e a escola.
Carl Spitzweg
O rato de biblioteca- por Carl Spitzweg




Estratégias para enfretamento por professores
Os pais, juntamente com os coordenadores pedagógicos, devem orientar professores e equipe técnica sobre as particularidades daquele estudante, e preservar o máximo possível o seu direito de ser diferente e respeitado, sem obrigatoriamente tornar de domínio público o diagnóstico de SA. O professor necessita criar um ambiente “Asperger amigável” com sala de aula calma e bem-estruturada. É essencial que o professor tenha acesso a informações e conhecimentos sobre a síndrome e frequentar cursos de formação relevantes. O maior progresso acadêmico e cognitivo tem sido realizado pelos professores que demonstram uma compreensão empática da criança. Uma estratégia para reduzir os problemas associados com o prejuízo das funções executivas é ter alguém para agir como um “secretário executivo”. Em alguns casos é necessária a presença de um auxiliar terapêutico. O professor pode destacar aspectos-chave da folha de tarefas de casa, prestar esclarecimentos e fazer perguntas por escrito para garantir que o indivíduo saiba quais os aspectos materiais do dever de casa são relevantes para o seu preparo para a tarefa14. Utilizar programas de treinamento de habilidades sociais com um formato em grupo (uso de histórias sociais, histórias em quadrinhos – conversação na linha cômica), programas de computador simples, e um manual e livro de ensino (Um guia para professores: “Ensinando as crianças com autismo a ler-mente” – Um guia prático por Baron–Cohen e Hadwin). Aprender como interagir com crianças da mesma idade é uma tarefa árdua para crianças autistas. Oferecer oportunidades (como piscina, playground) para as crianças observarem ou interagirem espontaneamente (mesmo que com limitações) com outras crianças parece ser ainda a melhor estratégia.

Considerações finais

O Alquimista por Carl_Spitzweg
O Alquimista por Carl_Spitzweg

Afirmamos que o sujeito com SA é capaz de aprender, cada um à sua maneira, desde que o diagnóstico seja precoce, a família disponha de uma rede social adequada, a escola tenha um compromisso pedagógico na formação desse ser e, finalmente, que seja elaborado um programa individualizado de intervenções intensivas. É mandatário que as pessoas entendam que a distinção entre os sujeitos com SA e as outras pessoas é que eles são diferentes em muitas maneiras e isso quer dizer, simplesmente, que há uma grande diversidade humana. Porém, sempre que essa variabilidade implicar sofrimento deve ser abordada de maneira terapêutica. Devemos estimular a mudanças na aceitação e nas atitudes e difundir o conhecimento sobre o autismo.


“Vocês riem de mim por eu ser diferente, e eu rio de vocês por serem todos iguais.” (Bob Marley)

Caio Borba Casella – Estudante do quarto ano da graduação em Medicina da FMUSP, participante da Liga de Psiquiatria Infantil do SEPIA (IPq-HC-FMUSP).
Camila Luisi Rodrigues – Neuropsicóloga, colaboradora do SEPIA e do Serviço de Psicologia do Instituto de Psiquiatria do HC-FMUSP, mestranda em Psiquiatria pelo mesmo instituto em Transtorno de Ansiedade na Infância e Adolescência com o apoio da FAPESP.
Lorena Alves Sampaio de Souza – Pediatra, psiquiatra da infância e adolescência, aprimoranda do Programa de Atendimento aos Transtornos Globais do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência (SEPIA) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de São Paulo (IPq/HC-FMUSP) e Associação de Amigos do Autista de São Paulo (AMA-SP).
Rosa Magaly C. Borba de Morais – Psiquiatra da infância e adolescência pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), especialista em Psiquiatria da Infância e Adolescência pela Associação Brasileira de Psiquiatria, médica colaboradora do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP.





Referências


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