terça-feira, 19 de julho de 2011

Não existe inclusão grátis

A universalização do ensino para alunos com deficiência abre espaço para discussões sobre o modelo de ensino do Brasil

Por Julia Mandil

Em 17 de março, a Diretora de Políticas Educacionais Especiais do Ministério da Educação, Martinha Claret, anunciou que as escolas de dois institutos centenários do Rio de Janeiro que trabalham com o ensino para surdos e cegos, o Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) e o Instituto Benjamin Constant (IBC), respectivamente, seriam fechadas até o fim do ano. Claret justificou sua afirmação dizendo ser a favor de uma política de inclusão dos alunos com necessidades especiais na rede convencional de ensino. Esta política está inserida no Plano Nacional de Educação (PNE), cujo projeto de lei foi enviado pelo Ministério da Educação ao Congresso em dezembro de 2010, e que traça objetivos e metas para a Educação no Brasil no período entre 2011 e 2020. A declaração de Claret gerou uma enorme insatisfação e mobilizou principalmente aqueles que seriam beneficiados por esta nova diretriz do governo: os alunos com deficiência e seus familiares. Membros da comunidade escolar e representantes de ambos os institutos travaram uma disputa com o governo para impedir o fechamento das duas escolas especializadas, e o caso ganhou tamanha repercussão na imprensa que o Ministro da Educação, Fernando Haddad, contradisse sua Diretora ao anunciar que tais instituições não seriam fechadas. Ele propôs então a realização da dupla matrícula, em que os alunos assistiriam às aulas na escola regular de manhã, e receberiam atendimento especializado nas instituições à tarde. A proposta não agradou os educadores e representantes do INES e do IBC, que ainda temem o fechamento das atividades escolares, mas provocou uma mudança no foco do debate. O que se discute atualmente não é apenas o fechamento dos institutos, mas sim o próprio sistema educacional do Brasil e a capacidade do mesmo de acolher, de maneira adequada, os alunos com deficiência e proporcionar a eles um ensino de qualidade.

Desde que se deparou com a possibilidade de ver encerradas as atividades do Ensino Básico e do Ensino Fundamental do local onde trabalha a chefe de gabinete do Instituto Benjamin Constant, Maria da Glória Souza de Almeida, tem atuado como uma espécie de porta-voz da instituição, participando das reuniões com autoridades do governo e concedendo entrevistas à imprensa. Sua maior preocupação atualmente é garantir que as escolas continuem funcionando por meio de um dispositivo legal, sem depender apenas da promessa do Ministro. Ela afirma que o Instituto quer também a mudança da meta número quatro do PNE, que propõe a universalização do atendimento escolar aos estudantes com deficiência na rede regular de ensino. Essa inclusão seria feita através de estratégias como a ampliação do atendimento especializado, promoção da articulação com o ensino regular, melhoria da infraestrutura e da formação dos professores entre outras medidas explicitadas no Plano.

Maria da Glória deixa claro que o Instituto não se opõe à proposta de inclusão do aluno com deficiência no ensino regular, mas sim ao modo como ela foi apresentada pelo governo, de maneira quase compulsória. “Eles (os representantes do governo) sempre falam no direito da criança de estudar na escola regular. É um direito? Claro que é. Agora, também não é direito da criança, se assim a família decidir, estudar na escola especializada? Por que o direito só afeta um lado, e não afeta outro?” Seu questionamento encontra fundamentos na legislação, pois tanto a Constituição Federal 1988 quanto a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 1996 asseguram o “atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência ou com necessidades educacionais especiais, preferencialmente na rede regular de ensino”. O termo preferencialmente abre espaço para que pais, alunos e amigos dos institutos pleiteiem a coexistencia de escolas especializadas e que se mobilizem para atrair a atenção e o apoio da opinião pública para a causa. Na internet circulam vídeos e petições alertando sobre a situação e pedindo apoio contra o fechamento das escolas, enquanto pais e representantes organizam manifestações, no Rio e em Brasília, exigindo o direito de escolha.

Presidente da Associação de Pais, Amigos e Reabilitandos do IBC, Luciano Pozino acredita que incluir um aluno com deficiência não significa apenas matriculá-lo no ensino regular, mas sim propiciar a ele um ambiente de segurança e inclusão social, que ofereça atividades adaptadas. Sua opinião é compartilhada por Ana Paula Abrantes, mãe de uma aluna do 4º ano do IBC e também membro da Associação de Pais. Ela cita o exemplo de um aluno que foi transferido do Instituto para o Colégio Pedro II, de ensino regular, onde não pôde participar das atividades de natação porque não havia profissionais adequados para ajudá-lo. Outro exemplo, exibido em uma reportagem da TV Globo veiculada em maio, mostra uma aluna do INES justificando que gostaria de continuar na escola porque prefere aprender as matérias na Linguagem Brasileira de Sinais (LIBRAS), porque isto ajuda a contextualizar o conteúdo e torna o aprendizado mais fácil.

Inclusão Prá Valer
Capacitação de professores e adaptação de material e conteúdo são a base de uma real inclusão. Esta é a visão compartilhada por pais e pesquisadores sobre as condições para que as escolas públicas recebam de maneira adequada os alunos com deficiência. Para a pedagoga especialista em educação inclusiva, Bruna Vianna, o despreparo vai além da falta de funcionários e materiais, mas diz respeito ao fato de que as escolas públicas não conseguem enxergar cada aluno como um ser individualizado e com especificidades diferentes. “Tudo o que é realizado (nas escolas públicas) - obra, compra de material, estruturação pedagógica - é pensado em conjunto para todo o público que a escola atende. Contudo, nem sempre o que é pensado para todos atenderá, de fato, a cada um.” Ela diz ainda que, ao pensar na inclusão, é preciso ter em mente que mesmo se tratando de uma mesma síndrome ou diferença funcional, cada aluno continuará sendo único em seu processo de socialização e aprendizagem. “Não é porque um determinado aluno com paralisia cerebral consegue escrever apenas utilizando um lápis mais grosso que todos os alunos com paralisia cerebral conseguirão”, exemplifica.
A questão da especificidade de cada aluno é o ponto reiterado pela professora da AVM Faculdade Integrada, Fátima Alves. Fonoaudióloga e participante de eventos nacionais e internacionais em Psicomotricidade e Educação, Alves acredita que o projeto de inclusão deve ser realizado a partir de uma mudança estrutural das escolas regulares. A instituição que receber um aluno deficiente deve ter um projeto que busque valorizar a cultura, a história e as experiências anteriores de cada turma. “As práticas pedagógicas precisam ser revistas, bem como as atividades que devem ser selecionadas e planejadas para que todos aprendam”, afirma, argumentando que os alunos têm que ter liberdade para aprender do seu modo, de acordo com as suas condições.
Outro ponto importante quando se discute a inclusão dos deficientes no ensino regular é a disponibilidade de recursos para fazer as adaptações necessárias. Bruna Vianna, que trabalhou como mediadora de uma criança deficiente em uma escola particular e hoje leciona para crianças surdas em uma escola pública especializada, destaca a falta de investimentos como a principal diferença no trabalho na inclusão dos dois ensinos. “Em uma escola particular, a direção entra em acordo com a família para possibilitar todos os recursos possíveis para o pleno desenvolvimento da criança incluída, como uso do profissional de mediação, materiais adaptados, entre outros. Já na rede pública, a criança incluída terá apenas os recursos existentes para todas as crianças, por mais que o professor queira incluir e se capacite para tanto, não há a possibilidade, por exemplo, de sugerir a uma família que contrate um profissional de mediação, ou que compre um computador para seu filho usar na escola”, afirma.
No Instituto Benjamin Constant também persiste a idéia de que a falta de recursos é um empecilho para que as escolas desenvolvam métodos apropriados para receber os alunos. Seus representantes defendem maior investimento nas próprias instituições especializadas, responsáveis por capacitar professores e fornecer materiais adaptados às escolas regulares. “A inclusão tem que ser viável. A escola regular tem que ser instrumentalizada e tem que ser apoiada por nós, que temos know-how pra isso”, afirma Maria da Glória. Sua visão é de que a discussão deve ser feita em um patamar pedagógico, e não apenas no âmbito político. “É preciso acabar com essa coisa do ‘educação especial versus educação inclusiva’. Não tem que ter versus, tem que ter ao lado. Nós não estamos em confronto, e é isso que queríamos que as pessoas, e principalmente o MEC, entendessem.” A reivindicação, portanto, é por uma educação de qualidade para todos, o que, na opinião da representante do IBC, não existe no Brasil.

“Inclusão não é dádiva. É Direito”
Apesar das certezas de que o ensino regular público precisa ser reformulado para receber os alunos deficientes, não existe, entre os educadores, um consenso sobre o modelo ideal de inclusão. Enquanto pesquisava o tema para fazer sua monografia sobre mediação, Bruna Vianna observou diversas situações de inclusão onde a criança ou adolescente conseguiam um bom desenvolvimento, mas diz não ter visto ainda um caso específico de inclusão bem sucedida. “Acho que nesse âmbito ainda se trabalha muito dentro do ensaio do erro, ainda dependemos muito do interesse e empenho pessoal dos profissionais da escola”, afirma. Para a pedagoga, a inclusão é eficiente quando respeita o aluno, independentemente de sua necessidade específica: seja ela uma síndrome, uma diferença funcional ou apenas uma impossibilidade temporária, como é o caso de crianças que passam por algum trauma e demonstram dificuldade de aprendizagem. “Não basta que todos olhem com piedade (...), é preciso que os profissionais queiram ensinar, não importa de qual forma cada criança irá aprender, desde que esteja constantemente estimulada.”

O modelo de inclusão proposto pelo MEC, em que as crianças assistem às aulas nas escolas regulares pela manhã e à tarde recebem o atendimento especializado, é criticado pelos pesquisadores da área principalmente pelo desgaste sofrido pela criança. Muitas vezes, os jovens não conseguem acompanhar as aulas matinais, e ficam exaustas com o deslocamento para as escolas especializadas e com a grande carga horária e de conteúdo. Crítica desse modelo, Maria da Glória teme que, com a universalização do ensino, as crianças com deficiência sejam preteridas em relação a uma criança dita normal no momento de efetuar a matrícula nas escolas do ensino básico, que muitas vezes não têm vagas suficientes para atender a demanda de alunos. Assim como Bruna, a representante do IBC acredita que a inclusão não deve partir de um sentimento de caridade, mas sim de um movimento que entenda que é direito das crianças receber o ensino adequado. “A inclusão não é dádiva, não é doação. Ela é Direito, mas Direito de todo mundo”, complementa.

Conhecedora deste direito Constitucional, a professora Fátima Alves afirma que a escola deve proporcionar aos alunos a experiência da diferença e fomentar a convivência entre as pessoas entendendo esta diversidade como um privilégio. “Acredito que estamos num processo de conscientização”, diz a professora em relação aos debates gerados sobre a questão da inclusão. Ela acrescenta que “existem muitos caminhos a percorrer, mas devemos ter muitos olhares e ser sabedores que existem muitos desafios”.

Enquanto o Plano Nacional de Educação do Governo aguarda a aprovação na câmara dos deputados, representantes da sociedade civil tentam, junto ao governo, ajustar a meta de inclusão para que ela possa, de fato, proporcionar uma oferta ainda maior de vagas e oportunidades aos jovens deficientes, e não limitar seu espaço de ensino. “O que nós queremos é que a criança com deficiência em geral tenha uma educação que supra suas necessidades” diz Maria da Glória, numa afirmação que faz coro com o discurso dos pais, educadores e representantes de movimentos pelos direitos da pessoa com deficiência. Quando se trata de mudanças na educação em um país com grandes disparidades e dívidas sociais, entende-se que o termo “inclusão” deve abraçar a todos, principalmente os que têm contra si desvantagens físicas, econômicas ou sociais. “A questão educacional é muito delicada. Mas parece que as pessoas não tratam o tema com a delicadeza e o refinamento de que ele necessita”, pontua, “e parece que esse refinamento é essencial quando se trata de conhecimentos e práticas especializadas que têm que ser construídas ‘sob medida’ da necessidade de cada aluno.”

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