terça-feira, 5 de agosto de 2014



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O risco dos estimulantes na infância
Crianças distraídas demais estão prestes a se enquadrar em um novo distúrbio, que já está no alvo de laboratórios. Isso pode aumentar o uso já exagerado - e perigoso - de estimulantes na infância

por Michele Muller

Imagem: Shutterstock
Insônia e ansiedade são efeitos colaterais comuns dos estimulantes para crianças. Muitas vezes, esses problemas são contornados com outras drogas psicotrópicas.
POR SER ABSORVIDO MAIS LENTAMENTE NA CORRENTE SANGUÍNEA QUE DROGAS ILEGAIS, OS EFEITOS COLATERAIS DOS ESTIMULANTES USADOS PARA TDAH SÃO, APARENTEMENTE, MENOS SEVEROS
Oficialmente, o que temos por enquanto é que "cientistas não estão certos sobre o que causa TDAH, embora muitos estudos sugiram que há uma grande contribuição genética. Como outras condições neurológicas, provavelmente resulta de uma combinação de fatores. Pesquisadores estão buscando possíveis fatores ambientais". A declaração do instituto nacional de saúde mental Americano (NIMH) reflete as incertezas sobre as quais se formam o diagnóstico, tão controverso e suscetível a erros.
Fundador do Centro de diagnóstico e desenvolvimento, em Chicago, e membro da academia americana de neurologia, o neurologista Richard Saul defende uma nova forma de olhar o TDAH: como um produto de uma condição primária e não como um distúrbio isolado. saul trabalha há cerca de 50 anos com crianças que apresentam sintomas de hiperatividade e défi cit e atenção.
Com experiência de quem tratou milhares de pacientes, ele afirma que, em nenhum caso que atendeu até hoje, o diagnóstico era independente de outra condição. E quando esta outra condição é investigada e devidamente tratada, os sintomas de TDAH tendem a desaparecer. em muitos casos, o que para outros médicos é comorbidade, para ele é a causa.
O neurologista listou 20 condições associadas ao comportamento típico de TDAH: de superdotação e problemas de visão e audição até síndromes, geralmente, mais debilitantes, como a do alcoolismo fetal. problemas oculares estariam, segundo ele, entre as mais simples e mais ignoradas explicações para comportamentos confundidos com TDAH em crianças. Deve-se investigar, ainda, possível falta de sono, falta de ferro na alimentação, dislexia, epilepsia, hipertireoidismo, transtorno obsessivo- -compulsivo, síndrome de tourette e distúrbio bipolar, para citar os principais.
Assim como o diagnóstico, o tratamento com estimulantes é bastante controverso. não há como questionar os efeitos milagrosos do metelfenidado (Ritalina e Concerta) em crianças "incontroláveis" e desfocadas. Essa droga, que o DEA (Drug Enforcement Administration) coloca na mesma categoria da cocaína, por agir de forma semelhante no cérebro, de fato ajuda o paciente a focar em tarefas monótonas e repetitivas, o que pode ser uma bênção para pais e professores. isso acontece, apenas, enquanto a criança está sob o efeito da medicação. Como um band- -aid, a droga não trata, apenas mascara o problema até o efeito passar. E o preço para isso pode ser muito alto.
Imagem: Arquivo PessoaL/Shutterstock
Estimulantes não tratam nenhum distúrbio, apenas mascaram o problema durante algumas horas
Por ser absorvido mais lentamente na corrente sanguínea que drogas ilegais, os efeitos colaterais dos estimulantes usados para TDAH são, aparentemente, menos severos. Assim como a cocaína, os estimulantes alteram o nível de neurotransmissores no cérebro, elevando a atividade de dopamina e noradrenalina. depois de algum tempo de uso, o cérebro ajusta sua produção natural desses químicos às alterações provocadas pelo medicamento, causando tolerância e possível dependência.
A tolerância é compensada com doses maiores e, muitas vezes, associadas a um segundo psicotrópico com ação antidepressiva ou ansiolítica, para minimizar os efeitos de ansiedade, depressão e humor apático, que, comumente, acompanham o uso de estimulantes. e a química do cérebro em desenvolvimento da criança é bagunçada por um coquetel diário de drogas.
Para acompanhar esses efeitos comuns da ação do metilfenidato, outros problemas físicos e psiquiátricos costumam aparecer, como perda de apetite, letargia, insônia, perda de peso, supressão no crescimento, hipertensão, alterações de humor, paranoia, episódios psicóticos e alucinações. Na maior parte dos casos, a apatia ou "efeito zumbi" - decorrência de curto prazo mais comum do uso do medicamento - é sutil. Mas, algumas vezes, transforma-se em depressão severa, com risco de suicídio entre adolescentes.

ASSIM COMO A COCAÍNA, OS ESTIMULANTES ALTERAM O NÍVEL DE NEUROTRANSMISSORES NO CÉREBRO, ELEVANDO A ATIVIDADE DE DOPAMINA E NORADRENALINA
De acordo com Robert Whitaker, em seu premiado livro investigativo Anatomy of An Epidemic (não editado no Brasil), a relação do uso de anfetaminas e desenvolvimento de psicoses é apontada, por muitos psiquiatras, como uma das evidências de que a esquizofrenia estaria relacionada a um nível alto de dopamina no cérebro.
Em 2006, depois de receber mil registros reportando psicoses induzidas por estimulantes para TDAH, o FDA (Food And Drug Administration) lançou um relatório sobre esse risco. De acordo com a entidade, os pacientes não apresentavam riscos identificáveis, comprovando a origem iatrogênica do problema. sabe-se que esses relatórios representam apenas 1% do número de efeitos registrados nos consultórios, o que demonstra que não se tratam de episódios raros. "Quando a condição da criança começa a deteriorar, os médicos quase nunca atribuem a piora ao efeito da droga e, sim, aumentam a dose e receitam novas medicações", lamenta Breggin.
A investigação de comportamentos, que causam prejuízos funcionais para a criança ou adolescente, não pode se restringir a uma rápida consulta onde é feito o check-list dos sintomas de TDAH que o DSM oficializou. E se a busca por uma melhora precisa, de fato, passar pela farmácia, é fundamental conhecer todos os riscos relacionados a uma solução química e de curto prazo.
Imagem: Arquivo PessoaL/Shutterstock


Michele Muller é jornalista com especialização em Neurociência Cognitiva e autora do bloghttp://neurocienciasesaude.blogspot.com.br

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