sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Autismo: entre a proteção e autonomia

“Este artigo foi escrito em resposta ao texto “Linda: a autista que namora”, publicado no Blogueiras Feministas em 16 de janeiro de 2014. No citado artigo foi possível perceber uma série de incorreções e questionamentos que demonstraram um desconhecimento da realidade das pessoas com TEA (Transtorno do Espectro do Autismo) e suas famílias e que poderiam ser potencialmente danosos para a nossa causa, especialmente diante de um público leigo. Fiz vários comentários com o objetivo de corrigir tais impressões e informar melhor os leitores do blog. Por fim achei necessário solicitar um direito de resposta, o que foi negado pela moderação do blog. Diante dessa negativa decidi compilar meus comentários, acrescentando novos dados, num artigo só, de modo a facilitar a leitura e divulgação dessas informações.
Considerei bastante problemática a negativa da moderação do Blogueiras Feministas em me conceder o direito de resposta. É de se estranhar que um blog que carrega o feminismo no nome não queira dar voz a uma mãe e militante que considerou necessário questionar um conteúdo ali publicado. Devo lembrar que um número significativo de famílias de pessoas com TEA é monoparental e tem a mãe como chefe de família. O abandono por parte dos pais quando do diagnóstico de TEA é um problema muito presente na realidade das famílias de pessoas com autismo. Diante disso um artigo com inf
ormações pouco embasadas, que questiona a necessidade de proteção das pessoas com TEA como uma forma de “coitadismo”, pode ser bastante problemático para essas mulheres. Deixo aqui meu questionamento dessa atitude da moderação do Blogueiras Feministas, que demonstra falta de solidariedade e empatia para com milhares de mulheres e mães que batalham muitas vezes sozinhas pelos direitos de seus filhos e familiares com autismo.”
Como muitos que acompanham o FemMaterna devem saber, sou mãe de um menino com autismo autista de 6 anos, psicóloga e atualmente membro da AMA-MG (Associação de Amigos do Autista). Estou dentro da militância pelos direitos da pessoa com o Transtorno do Espectro do Autismo – TEA e entendo que fomentar o debate seja sempre saudável. Dito isso, preciso apontar alguns pontos problemáticos no artigo publicado no Blogueiras Feministas.
Espectro do Autismo
O TEA é uma síndrome caracterizada prioritariamente por dificuldades na comunicação (verbal e não verbal), na socialização e pela presença de comportamentos estereotipados, como o balançar do corpo pra frente e pra trás ou o flapping das mãos. O TEA é considerado uma deficiência pela OMS (Organização Mundial de Saúde) e em dezembro de 2012 uma lei federal foi aprovada no Brasil reconhecendo o TEA como uma deficiência para fins de concessão de direitos e benefícios, além de garantir acesso a tratamentos fornecidos pelo SUS.
É preciso lembrar que o autismo tem particularidades que o tornam um transtorno único. O transtorno se apresenta como um espectro, ou seja, existem graus variados de gravidade, sendo que cada pessoa com autismo apresenta características muito particulares. Alguns autistas terão muitos comprometimentos pelo resto de suas vidas. Outros evoluirão de forma surpreendente, dadas as às condições necessárias para tanto, ou seja, intervenção precoce, tratamento adequado, apoio familiar, inclusão escolar. Mas o que sabemos é que todos eles precisarão de algum grau de apoio ao longo de suas vidas. E isso é válido mesmo para as pessoas com a Sindrome de Asperger, chamados aspies.
Além disso, muitos autistas apresentam um grau qualquer de deficiência cognitiva e algumas comorbidades, tais como epilepsia e presença de síndromes genéticas, como o X-Frágil. Mas mais importante que isso, devemos lembrar que faz parte das características do transtorno do espectro do autismo uma dificuldade muito grande de lidar com situações sociais.
Pessoas com autismo têm uma enorme dificuldade em entender situações sociais. Eles não compreendem como se dá uma interação social, como se inicia um diálogo ou como se responde a uma solicitação de interação, tal como o chamado dos coleguinhas para uma brincadeira ou as piadas dos amigos adolescentes. Eles podem chegar ao ponto de sequer compreender as expressões faciais, algo que os bebês aprendem naturalmente nos primeiros meses de vida. Também não entendem as nuances de uma conversa, mentiras, duplo sentido, hipocrisia ou má intenção por detrás dessas interações. Autistas se apegam ao que é dito, não ao que está por trás das palavras. Isso vai levar a uma série de dificuldades ao longo da vida, como isolamento, timidez e até agressividade.
Para trabalhar essa característica (que é uma deficiência) existem recursos terapêuticos, tais como a construção de histórias sociais que apresentam situações diversas para que o autista aprenda a interagir socialmente. Isso é feito com o objetivo de fazer com que o autista compreenda melhor o mundo e viva uma vida mais plena, independente e feliz. Muitos autistas conseguirão aprender a lidar com essas situações do dia a dia, com algumas limitações. Mas em muitos casos infelizmente essa interação permanecerá bastante restrita pelo resto da vida. Por isso o autismo passou a ser considerado uma deficiência.
Campanha de conscientização sobre o autismo do Senado Federal
Campanha de conscientização sobre o autismo do Senado Federal
Isto tudo demonstra como o TEA é um tema complexo. No entanto tenho observado muitas críticas, na maioria das vezes infundadas, à militância feita pelos familiares de pessoas com o transtorno. Tais críticas geralmente se baseiam de forma bastante leiga na ideia de que os tratamentos e intervenções feitas junto aos autistas visam corrigí-los ou adaptá-los forçosamente a uma normalidade padrão. Uma tentativa de normatizar o autismo, enfim.
Por outro lado existem críticas advindas das próprias pessoas dentro do espectro do transtorno do autismo. Em outros países já existe até mesmo um movimento criado e liderado por pessoas com autismo de alto funcionamento ou aspies que advogam ser o autismo uma espécie de “outra forma de ser no mundo”, um movimento pró neurodiversidade. Eles portanto não entendem o TEA como uma deficiência. Para estas pessoas o tratamento não seria necessário, já que o autismo seria só uma forma diferente de ver e viver a vida. Eu particularmente apoio que pessoas com autismo tenham sua voz e sejam ouvidas nas suas necessidades e insatisfações. Eu vejo o TEA não como algo a ser curado, mas uma condição humana que necessita de suporte e compreensão para atingir um desenvolvimento pleno. No entanto é preciso lembrar que o autismo é um espectro, ou seja, existe uma grande maioria de autistas que apresentam um quadro bastante grave, que são não verbais e que precisam de suporte de suas famílias e do Estado para garantir seus direitos, acesso a tratamentos e proteção. Portanto tal movimento, apesar de extremamente legítimo, não pode se arvorar a falar por todas as pessoas com autismo, sob pena de, ao buscar autonomia para uns, dificultar o acesso de outros a tratamentos e benefícios muito necessários. É preciso lembrar também que muitas dessas pessoas passaram por terapias que garantiram que hoje eles tivessem condições de falar por si, sem necessidade de representantes. Neste sentido parece-me um contra senso advogar contra estas mesmas terapias e negar o acesso de quem mais necessita delas.
Levantadas tais críticas precisamos nos voltar para os esforços das famílias em prol dos direitos dos seus filhos e parentes com TEA. Estas famílias têm trabalhado incessantemente para que seus filhos sejam pessoas bem sucedidas e independentes. Exigimos políticas públicas e atendimento interdisciplinar e de qualidade. Travamos batalhas duríssimas com o poder público que insiste em não enxergar o transtorno do autismo e as necessidades específicas que ele apresenta, teimando em fornecer aos autistas o mesmo tipo de tratamento que se despende a outras síndromes. Recentemente conseguimos fazer uma lei em âmbito nacional (Lei Federal 12.764, de 2012) que atenderá as pessoas com autismo nessas características próprias. Agora a batalha é que ela seja devidamente regulamentada.
Nós familiares também trabalhamos diariamente para que a sociedade compreenda e inclua as pessoas com autismo. A luta pela inclusão escolar e no mercado de trabalho é um esforço exatamente nesse sentido. Dizer portanto que nossa militância visa à “correção” do autismo é injusto e demonstra desconhecimento.
Infelizmente no artigo publicado no Blogueiras Feministas foi levantada a hipótese de que pessoas com autismo podem estar sendo caladas nas suas denúncias de maus tratos ao serem consideradas “incapazes” e que as famílias são uma grande fonte de violência contra os autistas. Isto é doloroso e injusto. Famílias podem ser fonte de violência em várias situações, como no caso de idosos, crianças pequenas, mulheres, etc. Mas no trabalho junto às famílias de pessoas com TEA procuramos fornecer apoio para que os familiares não se sintam desvalidos e abandonados ao ponto de chegar à agressão, motivada geralmente pela incapacidade de lidar com autistas de grau muito severo. Sabemos de casos de violência, mas eles são minoria e o que mais acontece, ao contrário do que se imagina, é que familiares e cuidadores sejam agredidos por autistas que não foram devidamente tratados e atendidos de forma correta e a tempo. Esses casos são resultado da falta de atendimento e do descaso do poder público com relação à população com TEA e suas famílias.
Tais críticas se tornam ainda mais problemáticas se levarmos em conta que alguns tratamentos oferecidos até pouco tempo atrás apontavam as mães como causadoras do autismo (a famosa teoria da mãe-geladeira). Este é um conceito ultrapassado mas que ainda reaparece na noção de que o autismo tem uma causa “psicológica”, ao contrário das evidências massivas que apontam para uma causação de ordem genética. Nós da militância temos trabalhado para desfazer esses estereótipos. Infelizmente a trama da novela da Globo só reforça essa noção ao mostrar a mãe como uma pessoa que nunca permitiu que a filha fosse devidamente tratada, impedindo seu pleno desenvolvimento. Um desserviço à sociedade, aos familiares e às próprias pessoas com TEA.
A autora do texto publicando no Blogueiras Feministas também diz que tem receio de que a voz dos autistas seja calada baseada numa “suposta” incapacidade cognitiva dessas pessoas. Vejam bem, essa incapacidade não é “suposta”. Ela é presumida com base em avaliações constantes por parte de uma equipe interdisciplinar que trabalha junto da família. Não é uma sentença para a vida toda, mas uma condição em constante reavaliação. Se isso falha é por conta da falta de atendimento de qualidade e acessível a todos, no contexto de um país que ainda não tem políticas públicas de qualidade em relação ao tratamento das pessoas com autismo. Jogar isso para cima das famílias, como se estas desejassem manter seus filhos como eternos tutelados é, digo novamente, extremamente injusto.
E com relação ao direito das pessoas com deficiência a levar uma vida sexual e amorosa saudável, eu não poderia concordar mais. Nós familiares de pessoas com autismo não desejamos nada além disso: que nossos filhos, irmãos e parentes sejam felizes, que encontrem uma pessoa que os respeitem e amem e que, se possível, constituam suas próprias famílias. Muitos autistas são capazes disso e nós trabalhamos diariamente para que esse número seja cada vez maior. No entanto algumas pessoas com autismo precisarão sim de proteção e o mecanismo da incapacidade jurídica muitas vezes terá de ser utilizado para garantir essa proteção.
Reconhecer a incapacidade garante direitos, tais como a proteção, o acesso ao apoio estatal e benefícios previdenciários. Não é um mecanismo para impedir o acesso da pessoa com deficiência, nesse caso com TEA, à felicidade e ao amor. A possibilidade de envolvimento afetivo das pessoas com autismo deve ser analisada no caso a caso, como o texto da querida Ana Arantes deixou bem claro. Tratar a preocupação dos familiares como paternalismo é cruel e injusto. Creio que quem vive o autismo no seu cotidiano pode avaliar o quanto as famílias lutam para que seus filhos sejam felizes.
Finalmente, já nos comentários do citado texto, a autora fez a seguinte afirmação: “acho irresponsável jogar todos os casos de autismo na vala comum do abuso de incapaz. Incapazes de que? Por que capacidades individuais não podem ser valorizadas?”. Bem, não sei se autora sabe, mas o apoio dado à pessoa com autismo através de terapias e na inclusão escolar e no mercado de trabalho sempre visa valorizar as características individuais e os pontos fortes da pessoa com autismo. Costumamos dizer que o autista geralmente possui ilhas de habilidades. São esses pontos fortes, os trabalhados na pessoa com autismo. O tratamento é sempre respeitoso com relação às características individuais e de contexto social. Recomendei a autora que procurasse conhecer melhor os métodos ABA, TEACCH, PECS, de construção de histórias sociais e de teoria da mente. Essas terapias têm a palavra autonomia como meta maior. Autonomia baseada no respeito à individualidade, ao grau de maturidade e capacidade de cada pessoa com TEA. Isso, repito, não é correção, é apoio.
Eu espero que este texto sirva para desmistificar algumas noções errôneas associadas ao autismo e ao tratamento e militância a ele voltados. Precisamos lembrar que a personagem Linda é uma peça de ficção, não necessariamente correspondendo à realidade das pessoas dentro do espectro do transtorno do autismo. Basear uma discussão séria e com consequências potencialmente danosas para pessoas com autismo mais severo, numa novela global, é algo a ser feito com muito cuidado e bom senso. Neste sentido escutar as famílias e profissionais é extremamente necessário: NADA SOBRE NÓS, SEM NÓS!
Agradecimentos especiais à Denise Martins Ferreira e às colegas do FemMaterna Vanda e Bárbara pela revisão e sugestão de termos.
NOTAS:
Para conhecer mais sobre o movimento pró neurodiversidade eu recomendo o excelente artigo “O sujeito cerebral e o movimento da neurodiversidade”, de Francisco Ortega, disponível online no link abaixo:
Artigo da Ana Arantes sobre a personagem Linda e a autonomia da pessoa com TEA: http://scienceblogs.com.br/odiva/2014/01/e-a-moca-autista-da-novela-heim/

Nenhum comentário:

Postar um comentário