terça-feira, 14 de junho de 2011

SILÊNCIO.

Faltam palavras ao escritor.
No seu transbordar das ideias, nos afectos inquietos do corpo, na angústia do deslocar.
Como é complexo se comunicar, como é complexo viver, como é complexo viver a multiplicidade... como... tantos “comos” nos invadem o corpo, o pensamento, o movimento que parecem por instantes nos paralisar.
Ah!, como é bom parar!
Permitir-se contemplar.
Contemplar a natura perdida, a cultura invasora, o cheiro dos corpos, o som das bocas, a textura dos afectos, o gosto dos encontros, a imagem do agora.
Contemplar.
Essa ousada atitude que na calma encontra profundidade, gera resistência, propõe reflexão, produzir criação. Meu mundo é aquele que apreendo, ou seja, somos o mundo que contemplamos. Logo, sou um somatório de repetições, expectativas, um conjunto de contemplações...
“Posso ser o que o meu desejo afeta o seu desejo e faz do desejo a potência criativa de ser no mundo, um devir criativo, potente, prepotente, um devir sem limites ou cortes, um devir de possibilidades, sensações, percepções, um deslocar em mim do outro que habita um outro eu dentro de mim.”
Na repetição há produção de singularidade, constrói-se diferença. O silêncio contemplativo do escritor faz parte de seu processo, a contemplação que resiste, o hábito que nasce, as impressões que se marcam...
O processo criativo é parte de um fluxo intenso, produção de sensações, afectos, perceptos. E a escrita, é uma possibilidade dentro dos infinitos caminhos para produção. Mas, o que fazer quando o escritor não consegue alinhar-se com seu fluxo criativo?
Segundo Deleuze, o escritor e o filósofo estão à espreita. Assim, como o animal, sempre a espreita de algo, a tensão é constante, ou melhor, a atenção é constante.
E nessa espreita, tudo é valoroso, tudo ganha sentido, mas não é possível escrever tudo de tudo, não há palavras suficientes para expressar o sentir do escritor. E mesmo o escritor, depara-se com seu vazio, um silêncio de palavras e sentidos, que o angustia por ter que escrever palavras com sentido. Surgindo indagações: o escritor escreve dele? Para ele? Para o leitor? Como é o escrever para o escritor?
“Seria preciso dizer que, no limite, um escritor escreve para os leitores, ou seja, “para uso de”, “dirigido a”. Um escritor escreve “para uso dos leitores”. Mas o escritor também escreve pelos não-leitores, ou seja, “no lugar de” e não “para uso de”. Escreve-se, pois “para uso de” e “no lugar de”.”

Um texto vivido de encontros com pessoas queridas, com comida boa, vinho bom, papo bom e Deleuze na tela da TV falando a letra A do abecedário de Gilles Deleuze, mais em pausa que em fala, me afetou no silêncio da imagem e na força das palavras. Em mais encontros chega, Melville com Bartleby, no livro e na peça, e a inquietação do silêncio continua me afetando, impossível não seria ficar em silêncio, na angústia de experimentar a contemplação da passividade. Silêncio. Minha pronuncia silenciosa da descoberta da escrita, do contato, da relação, do meu devir animal.

Encontros – Tátia Rangel; texto da Revista Tempo número 1.

O abecedário de Gilles Deleuze; letra A – animal.
No uso de afectos, dirigidos a outros, para usos múltiplos, no lugar desterritorializado no esforço de reterritorializar em outro território. A escrita ganha sentidos, territórios, afectos, conceitos, ganha e perde, se repete na diferença, gera potência por sua singularidade. Então,
“Escrevo no lugar dos selvagens, escrevo no lugar dos bichos”. O que isso quer dizer? Por que se diz uma coisa dessas? “Escrevo no lugar dos analfabetos, dos idiotas, dos bichos”. É isso que se faz, literalmente, quando se escreve. Quando se escreve, não se trata de história privada. (...) Escrever não é assunto privado de alguém. É se lançar, realmente, em uma história universal e seja o romance ou a filosofia, e o que isso quer dizer...”
, contemplando à espreita está o escritor em seu silêncio barulhento, no território que é o espaço do ter, preparando-se para sair dele e se aventurar no ser no mundo. Lançando-se em palavras, forçando a linguagem, distinguindo a animalidade, metamorfoseando pela sintaxe.
“Não há literatura que não leve a linguagem a esse limite que separa o homem do animal. Deve-se estar nesse limite. Mesmo quando se faz filosofia. Fica-se no limite que separa o pensamento do não-pensamento. Deve-se estar sempre no limite que o separa da animalidade, mas de modo que não se fique separado dela. Há uma inumanidade própria ao corpo humano, e ao espírito humano, há relações animais com o animal.”
E no silêncio da noite, enquanto o lobo está à espreita da caça, o escritor à espreita da escrita, aqui estou eu, afectada, emocionada, fascinada pela deslumbrante potência em se reterritorializar, em criar, recriar, ousar ser e estar no agora, nesse espaço tempo de duração, gerando impressões sensíveis, percepções. Produzindo pensamentos-reflexão sem o compromisso do “ter que dar certo”, mas experimentando a possibilidade, “de dar certo”.
No compromisso com o animal realizando a possibilidade do pensar, esbarro novamente com Zaratustra de Nietzsche,
“De tudo o que se escreve, aprecio somente o que alguém escreve com seu próprio sangue. Escreve com sangue; e aprenderás que o sangue é espírito.
Não é fácil compreender o sangue alheio; odeio todos os que lêem por desfastio.
Aquele que conhece o leitor nada mais faz pelo leitor. Mais um século de leitores – e até o espírito estará fedendo.
Que toda gente tenha o direito de aprender a ler, estraga, a longo prazo, não somente o escrever, senão também, o pensar”.

E neste momento, peço ajuda a Bartleby para proferir a fórmula:
PREFIRO NÃO.
E, assim, manter-me no compromisso de contemplar, em silêncio.
Tátia Rangel
Junho/2011.

Idem.
Idem.
Texto: Do ler e escrever - Assim falou Zaratustra, de Nietzsche.
Livro: Melville, Herman. Bartleby, o escriturário. (Uma história de Wall Street).
Teatro: peça em cartaz na Casa de Cultura Laura Alvim, Maio/2011. Rio de janeiro.

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