Nascido no Dona
Marta, ele fez carreto de feira, entregou jornais e, hoje, é professor de
música
O professor de música Rodrigo Belchior: ‘Sou um apaixonado pela educação’O Globo / Márcia Foletto
RIO - Ele nasceu no Dona Marta e cresceu no meio da
guerra. Foi colega de escola de Marcinho VP, perdeu vários amigos, viu a casa
da família ser invadida por traficantes. Muitas vezes saiu para trabalhar no
meio do tiroteio: aos 13 anos, já era entregador do GLOBO, tinha orgulho da
carteira assinada e não queria perder o emprego. Hoje, aos 36 anos, Rodrigo
Belchior é um homem realizado. Fez faculdade de música na Unirio, pós-graduação
em educação na Candido Mendes e, sempre trabalhando com jovens de comunidades,
já teve a alegria de ver alunos seus formados e passando adiante o que
aprenderam com ele. No Dona Marta, já existe uma terceira geração tocando, transmitindo
conhecimento e resgatando a autoestima e a cidadania das crianças, a seu ver a
função primordial da educação nas comunidades. Professor dos colégios Andrews e
Santo Amaro, ele também dá aulas para os professores da Escola de Música da
Rocinha, e faz palestras sobre educação musical pelo Brasil inteiro. Seu
entusiasmo pelas possibilidades sociais do ensino não tem limites; afinal, ele
é a melhor prova do que uma boa educação pode oferecer.
— Quando eu comecei a estudar, ninguém perto de mim
sabia o que era universidade — diz. — Essa é uma conversa que simplesmente não
se ouve nas comunidades. “Quero ser mecânico”, “Vou trabalhar na obra”, as
conversas são essas. Ninguém entende muito bem para que estudar, é algo que
está muito distante da realidade. Atualmente, há anúncios de universidade por
toda a parte, mas fazer uma faculdade nem entra nos sonhos de quem não terminou
sequer o ensino médio. Terminar o ensino médio, aliás, é um trabalho enorme
para um menino pobre, que geralmente estuda de noite, depois do trabalho. E o
desânimo? O ambiente de boa parte das escolas públicas não é favorável, não dá
vontade alguma de estudar ou de ir à aula. Todo o contexto, que vai da família
à escola, é desfavorável. Numa comunidade, os pais não educam os filhos para
serem alguma coisa, educam para não serem: eles não querem que os filhos sejam
bandidos, e só. Mas a educação é feita para valorizar: você vai ser um médico,
um advogado, um professor... Os meus filhos vão fazer universidade porque falo
com eles, sento para desenhar e conversar, falo o quanto é importante estudar.
O universo da escola e da universidade faz parte da linguagem familiar. Estou
fazendo isso com os meus filhos e com os meus sobrinhos, que crescerão com uma
perspectiva completamente diferente daquela com que eu cresci. A importância do
ambiente familiar não pode ser subestimada. Fui o primeiro da minha família a
ter curso superior; com isso trouxe uma das minhas irmãs, que se formou em
fisioterapia, outra irmã que se formou em pedagogia na semana passada, e estou
tentando trazer uma terceira irmã. Sou um apaixonado pela educação. Ela mudou a
minha vida, e pode mudar a de muita gente.
Até hoje, ele é amigo do seu melhor professor:
— Volta e meia me perguntam quem foi o meu primeiro
professor de música. Passei anos respondendo uma besteira: “Tinha uma
professora na escola pública...” Até que um dia pensei, não, não foi essa a
minha verdadeira professora! Foi o meu professor de ciências José Cardoso. A
professora de música dava uma escala, mandava todo mundo decorar. Passávamos
meses naquilo, era uma chatice. Um dia, o professor de ciências mandou que um
batucasse na mesa, o outro na parede, o outro batesse palmas. E disse para
prestarmos atenção aos vários sons, e às diferenças entre eles. Até então, eu
nunca tinha prestado atenção nisso. Eu não tinha essa escuta ativa, que só
desenvolvi a partir das aulas dele. Na semana seguinte, ele carregou a turma
toda para o Leopoldo Miguez para ouvir um concerto. Sentou todo mundo lá na
frente: “Vale nota! De ciências!” Fiquei babando, deslumbrado com um solo da
flauta. E aí é que começou tudo.
Essa é a experiência que ele tenta passar para os
seus alunos: mais do que ensinar uma disciplina, espera ensinar o gosto pelo
estudo e a crença no poder da educação. Nesses tempos de fama instantânea via
YouTube, não é uma tarefa simples. Aprender toma tempo e não oferece resultados
ou recompensas imediatos. Há sempre alguém que pensa em desistir no meio do
caminho e, pior, alguém que sucumbe à tentação permanente do tráfico de drogas.
O bom professor tem que estar muito atento, e ter a manha para convencer as
ovelhas desgarradas.
A vida do menino Rodrigo foi dura, e daria um filme
ou um romance. Mas sempre com uma pegada leve e ligeiramente cômica mesmo nos
momentos mais difíceis: ele não acredita em drama, e acha que tudo se resolve
melhor com humor e com gentileza. Quando era bem pequeno, ia para a feira, para
carregar as sacolas das velhinhas. Ganhava uns trocados e comprava as suas
caixas de lápis de cor. Aos 9 anos, foi promovido: conseguiu um carrinho de
caixote de bacalhau, e passou a carregar compras maiores. Pouco depois, passou
a auxiliar de uma barraca de frangos. A dieta da família melhorou muito. Ele
levava para casa as cabeças, os pés e os pescoços das galinhas, desprezados
pelas madames.
— Nós passamos a comer direito, mas, em
compensação, pegamos um verdadeiro enjoo de canja com o passar do tempo. Era
canja no almoço, canja no jantar, canja no café da manhã.
Um dia, soube que O GLOBO estava contratando entregadores.
Apresentou-se, conseguiu uma vaga e deu adeus à feira e às galinhas. Trabalhava
de madrugada, e se divertia com o que fazia. Passou a conhecer pessoas de todos
os níveis sociais e de todas as profissões. Alguns pediam que tocasse a
campainha quando chegasse para acordarem para ir para o trabalho, outros
ofereciam cafezinho. O Natal era bem recheado. Também, não havia quem não se
encantasse com o menino alegre e despachado, sempre de bom humor.
— Nem tudo era tranquilo, — lembra ele. — Durante
uma época, eu entreguei jornais perto do cemitério. Imagina o que é isso na
cabeça de uma criança, passar de madrugada perto de um cemitério... Havia dias
em que era muito complicado sair e entrar no morro, havia tiroteios pesados.
Mas, no fim, tudo dava certo. Por ter essa experiência é que não concordo, de
jeito nenhum, com a proibição do trabalho para menores. Se há tanta gente hoje
no tráfico é, em grande parte, porque não há trabalho em outros lugares. Eu
comecei a trabalhar muito cedo e isso não me diminuiu em nada.
Rodrigo foi estudar música por insistência de um
amigo, que queria companhia. Inscreveu-se num projeto do Museu Villa-Lobos,
dirigido por Turíbio Santos, que oferecia bolsas a jovens da comunidade para a
Escola Brasileira de Música. Conquistou uma das vagas, e ganhou uma flauta do
museu.
— Quando apareci em casa com a flauta, minha mãe
logo quis saber onde eu tinha arranjado aquilo. Estava com medo que eu tivesse
roubado. Brinco muito com ela até hoje por causa disso, mas reconheço que, do
ponto de vista dela, era esquisito mesmo: cheguei em casa com aquele negócio de
prata novinho, no plástico — peraí, que história é essa? Ela foi no Villa-Lobos
saber, perguntou para todo mundo o que estava acontecendo. Aí veio o meu pai,
dizendo que eu tinha que trabalhar, que aquilo não ia me dar futuro. Eu peitei.
Disse que não queria passar a vida inteira entregando jornal. Eu queria sair da
madrugada para ser um flautista. O mais engraçado é que eu tenho amigos bem de
vida que também questionam a minha escolha profissional. “Mas logo música? Como
é que você vai viver disso?” Mas já comprei apartamento, tenho casa de praia,
troco de carro. Está de bom tamanho.
Na verdade, está de ótimo tamanho. O que muita
gente de classe média não consegue, o menino oriundo de uma comunidade carente
conquistou bem antes dos 40. Rodrigo, porém, não gosta da expressão “comunidade
carente”, já que a carência não é um atributo exclusivo das comunidades. Um
dia, quando trabalhava no projeto Villa-Lobinhos, que funcionava numa linda casa
na Gávea, foi procurado por uma elegante senhora da vizinhança, que queria
matricular o filho. Ele explicou que o projeto era para crianças carentes. “Mas
o meu filho é a pessoa mais carente do mundo”, retrucou a senhora. “Está na
terapia há anos!” Rodrigo aprendeu a lição.
Como todo mundo que, de uma forma ou de outra, está
envolvido com projetos sociais, ele também anda em busca de verbas. Atualmente
procura patrocínio para a orquestra do extinto Tim Música nas Escolas, que foi
abandonado pela operadora de telefonia depois de seis anos de bons serviços.
— Essa orquestra começou em três escolas da rede
municipal. Muitos jovens que passaram por lá encontraram um rumo: uma acabou de
entrar para a faculdade de psicologia, outra entrou para pedagogia, uma terceira
já está no meio do curso. Todos nasceram em comunidades, estudaram em escolas
públicas e muitos já estão na universidade. É um trabalho que vem rendendo
frutos há anos, seria uma pena interrompê-lo.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/rio/rodrigo-belchior-uma-vida-afinada-com-educacao-5034266#ixzz1y3yxlW2q
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Esse Rodrigo faz a diferença.
Orgulho: Foi meu aluno
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