Ilustração do filósofo René Descartes, que foi o primeiro a estabelecer a dicotomia corpoXmente.

PSICOSSOMÁTICA PSICANALÍTICA EM DEBATE

No dia 31 de outubro, a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo promoverá a 1ª Jornada de Psicossomática Psicanalítica. O encontro tem como objetivo apresentar os referenciais teórico e clínico desse campo de estudo que, além de nos oferecer novos vértices de observação, amplia a possibilidade de compreensão e do tratamento das psicopatologias contemporâneas.
O texto abaixo discute alguns dos conceitos principais dessa área de conhecimento e aborda qual a sua contribuição para uma compreensão mais ampla das patologias contemporâneas, nas quais o corpo está cada vez mais implicado.
1. Afinal, o que é a psicossomática psicanalítica?
Do ponto de vista teórico, a psicossomática psicanalítica constitui uma abordagem dos fenômenos psíquicos primitivos que podem ser observados nas psicopatologias psicanalíticas contemporâneas. Entre essas patologias, incluem-se as doenças psicossomáticas que se caracterizam por um comprometimento da constituição do narcisismo primário e do processo de simbolização. Há um déficit na transformação do corporal em psíquico, isto é, na aquisição da representação por meio da palavra. Em outras palavras, pode-se dizer que esta abordagem fornece ferramentas para a escuta corporal.
Nesse contexto, é fundamental reconhecer corpo e mente como uma unidade, um mesmo território, ocupado por estruturas psicossomáticas que se diferenciam pelos diferentes graus de complexidade psíquicas. Essa perspectiva de compreensão opõe-se às ideias vigentes da psicossomática médica, para a qual corpo e mente são tidos como duas estruturas separadas que se influenciam mutuamente.
De acordo com a Escola de Psicossomática de Paris, existe uma relação inversamente proporcional entre a gravidade dos sintomas somáticos e o grau de complexidade do funcionamento psíquico. Isso significa que, em quadros patológicos, quanto mais primitiva e menos complexa for a atividade psíquica e a capacidade de representação, mais poderemos observar alterações somáticas importantes.
Resumidamente, o princípio que rege o funcionamento psíquico dos pacientes que somatizam é a desorganização progressiva, um conjunto de movimentos profundos que atravessam toda a estrutura psicossomática e a negativizam. Ocorre uma espécie de apagamento gradual de todas as formações psíquicas, das mais às menos evoluídas, em consequência da fragmentação generalizada da rede representacional e da ruptura com as fontes pulsionais inconscientes, que pode se dar de forma mais ou menos acentuada. Para Pierre Marty, esses movimentos desorganizadores são decorrentes da pulsão de morte.
A desorganização progressiva desencadeia dois tipos de processos de somatização: a regressão somática e o desligamento psicossomático. Na regressão somática a desorganização se detém em determinado órgão ou segmento corporal, que serve de platô de fixação para que os movimentos evolutivos reorganizadores da pulsão de vida reconduzam aos níveis psíquicos mais complexos. A função do sintoma é deter o processo regressivo e criar as condições necessárias para que o psiquismo se reorganize. Ocorre nas organizações psíquicas neuróticas. Tais movimentos de regressão somática são sustentados pela libido.
Já o desligamento psicossomático refere-se a um processo de longa duração, no qual a regressão atinge os níveis mais primitivos da vida emocional inseridos no somático. Instala-se a doença somática que se cronifica e conduz o sujeito a graus significativos de incapacidade para a vida, podendo levá-lo à morte. Este processo decorre da perda dos valores libidinais e tem como maior consequência a liberação da destrutividade interna. Os parâmetros narcisista e quantitativo, por um lado, e a duração do estado de desligamento pulsional, por outro, concorrem para a instalação e a manutenção da doença somática.
As bases freudianas da psicossomática residem em dois conceitos fundamentais:
– a vida pulsional e as relações de estrutura e funcionamento das famílias de neuroses;
– a oposição entre neuroses atuais e psiconeuroses de defesa.
As pulsões são as operadoras da estrutura psicossomática: ao mesmo tempo a marca do orgânico e do psíquico, assegurando permanentemente o vínculo somato-psíquico. Isso se dá por meio de vias que se originam na geografia do corpo e que confluem ao psiquismo.
2. Como essa abordagem contribui para a compreensão e tratamento das patologias contemporâneas, nas quais o corpo está cada vez mais implicado?
A psicossomática psicanalítica, inicialmente, desenvolveu uma compreensão do funcionamento emocional nas somatizações. No entanto, com o decorrer do tempo, constatou-se seu maior potencial de abrangência. Seu corpo de teorias passou a dar conta também dos quadros psicopatológicos contemporâneos, nos quais há o comprometimento da constituição do narcisismo primário e falhas do processo de simbolização, o que dificulta a transformação do corporal em psíquico.
O corpo, assim, impera como palco da dor psíquica. Nas somatizações, o que se expressa é o corpo libidinal e o sintoma corporal não possui significado, uma vez que houve comprometimento na instauração do recalque primário, substituído pelos processos de recusa e cisão.
Tais conceitos nos auxiliam a compreender o funcionamento de indivíduos com dificuldade de sentirem e de se apropriarem das próprias emoções. Estas acabam por permanecer no corporal devido ao prejuízo da capacidade de representação. O mecanismo descrito é o que está na base das somatizações e dos quadros denominados de clinica contemporânea ou clinica do vazio.
Para os analistas, a dificuldade se encontra na precariedade dos processos de simbolização e mentalização que tais indivíduos geralmente apresentam. Em análise, isso se expressa na ausência da capacidade de associar e abstrair. O vazio interno é preenchido por uma verborragia sem fim, na qual não há espaço para, sequer, um momento de escuta. Fatos do cotidiano são contados sem ligação associativa, sem correlação, sem ligação afetiva. Pode-se observar ainda uma inercia total frente aos fatos da vida. Falta vitalidade, falta libido. Só há o corpo que dói e que se expressa por si, sem representação por meio da palavra. Denominamos esse quadro de depressão essencial, um importante referencial da psicossomática psicanalítica.
Nesses casos, uma das funções do analista é tentar estabelecer as correlações possíveis que se perderam.
3. Qual será o enfoque da Jornada e principais presenças/temas?
Nesta Jornada, duas conferências irão contextualizar a psicossomática psicanalítica na clínica contemporânea.
Diana Tabacof, membro da Sociedade Psicanalítica de Paris e do Instituto de Psicossomática de Paris, discorrerá sobre a psicossomática psicanalítica hoje: o modelo pulsional da Escola de Paris.
Mikel Zubiri, analista didata da Sociedade Psicanalítica de Madri, discutirá a abordagem psicanalítica dos pacientes somáticos graves.
Além das conferências, haverá três mesas redondas com a participação de colegas brasileiros que investigam e trabalham com este tema. O foco aqui é refletir sobre as relações da psicossomática com o narcisismo, com o meio ambiente e com a dor psíquica. Por fim, a apresentação de material clínico vai propiciar uma análise cuidadosa das vicissitudes da prática clinica, nesse campo.
Fontes:
Comissão Organizadora da 1ª Jornada de Psicossomática Psicanalítica da SBPSP: Victoria Regina Béjar, Candida Sé Holovko, Denise Aizemberg Steinwurz, Eliana Riberti Nazareth e Silvia Joas Erdos.